quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

FESTA DA AMIZADE - 16

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Outra foto da Festa da Amizade de 1972 (ou 1973), na qual aparecem vários colegas da XX Turma da Faculdade de Medicina de Sorocaba.

Como sabemos, o tema dessas imagens que temos publicado no blogue é, essencialmente, a memória de nossa passagem pela escola - vale dizer, a nossa transição da adolescência para a vida adulta.

A propósito desse assunto, há uma linda referência ao fluxo de lembranças evocativas da infância e da adolescência num livro escrito por José Saramago, que ele denominou As Pequenas Memórias; transcrevemos, abaixo, um trecho dessa obra notável, escrita com rara sensibilidade e talento invulgar, atributos do gênio literário que foi Saramago; desfrutem-no:

"A criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: ‘Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!’ Naturalmente, quando subia ao campanário da igreja ou trepava ao topo de um freixo de vinte metros de altura, os seus jovens olhos eram capazes de apreciar e registar os grandes espaços abertos diante de si, mas há que dizer que a sua atenção sempre preferiu distinguir e fixar-se em coisas e seres que se encontrassem perto, naquilo que pudesse tocar com as mãos, naquilo também que se lhe oferecesse como algo que, sem disso ter consciência, urgia compreender e incorporar ao espírito (escusado será lembrar que a criança não sabia que levava dentro de si semelhante jóia), fosse uma cobra rastejando, uma formiga levantando ao ar uma pragana de trigo, um porco a comer do cocho, um sapo bamboleando sobre as pernas tortas, ou então uma pedra, uma teia de aranha, a leiva de terra levantada pelo ferro do arado, um ninho abandonado, a lágrima de resina escorrida no tronco do pessegueiro, a geada brilhando sobre as ervas rasteiras. Ou o rio. Muitos anos depois, com palavras do adulto que já era, o adolescente iria escrever um poema sobre esse rio — humilde corrente de água hoje poluída e malcheirosa — em que se tinha banhado e por onde havia navegado. Protopoema lhe chamou e aqui fica: ‘Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos nós cegos, puxo um fio que me aparece solto. / Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os dedos. / É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos, e tem a macieza quente do lodo vivo. / É um rio. / Corre-me nas mãos, agora molhadas. / Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de repente não sei se as águas nascem de mim, ou para mim fluem. / Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o próprio corpo do rio. / Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os barcos e o céu que os cobre, e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos. / Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas águas como os apelos imprecisos da memória. / / Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga. / / Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e firme pulsar de coração. / Agora o céu está mais perto e mudou de cor. / É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo acorda o canto das aves. / E quando num largo espaço o barco se detém, o meu corpo despido brilha debaixo do sol, entre o esplendor maior que acende a superfície das águas. / Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória e o vulto subitamente anunciado do futuro. / Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco. / Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos e rumorosas as suas folhas. / Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem, sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam. / Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva. / / Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos. / Depois saberei tudo.’ Não se sabe tudo, nunca se saberá tudo, mas há horas em que somos capazes de acreditar que sim, talvez porque nesse momento nada mais nos podia caber na alma, na consciência, na mente, naquilo que se queira chamar ao que nos vai fazendo mais ou menos humanos. Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e húmida vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu até às fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo."

(acesso em 05/01/2011)



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